maio 20, 2009

A falta de um franco objecto de desejo está neste preciso e milionésimo segundo a atormentar-me.

Já lá me dizia a mãezinha em tempos desfocados, com uma tonalidade estranhamente maternal de quem nos surpreende com o conhecimento de nós e numa expressão categoricamente assim: "Micaela, tu és uma insatisfeita. Vais ser sempre." É pena a alma pesar-me tanto, que a inércia é imensa. Estou neste preciso momento a absorver muito pouco o mundo. Porque os insatisfeitos têm como estratégia de sobrevivência percorrê-lo na busca incessante de algo que lhes mate a fome. E que fome. E eu mal me percorro, quanto mais.

A erva é eficaz, mas transitória, antes sequer que eu a perceba. Mas sim, areja-me as divisões. Também não raras vezes entope-as de cotão.

A falta de um franco objecto de desejo atormenta-me. Assusta-me não querer muito nada. Porque eu gosto muito de querer tudo. Muito. E neste momento não quero muito o que tenho diante dos olhos, nem o que tenho escondido. Nem o que já quis.

Não quero deixar Paris. Não quero ficar. Queria morar em Paris, mas sinto que já não moro. Já não lhe habito. Porque se entranhou em mim a vontade urgente de partir. Aquela. A de sempre. ("Mas eu ainda não vi nada! Quantas vezes não a levei comigo, quanta luz perfeita falhei, quantos ares de espanto e de pasmo e de revelação me faltam: Eu moro em Paris, putain!..., ainda não me cruzei com o Chico Buarque - a casa continua em obras - ainda não entrei naquela boulangerie, ainda não me sentei em todos as esplanadas que queria, ainda me perco no Marais, ainda não usei a minha distância focal de 200mm a furar privacidades alheias vezes suficientes") Gosto de pensar que ainda tenho tempo. Não para tudo, mas para sentir que foi tudo.

A falta de um franco objecto de desejo ainda me atormenta. Talvez uma rua nova em Lisboa. Talvez um sorriso novo. Quero tudo novo. Não tudo de novo.

Não quero o que já quis. Só tenho medo que a inércia do meu ego seja suficientemente pesada para me impedir de o rejeitar.

(são 7.00 da manhã, não vou ao estágio e está uma luz linda; só queria poder levá-la a passear e passear os meus vários olhos por Paris; mas talvez deva dormir um pouco e retomar a utilidade corriqueira do estudo - como eu também não quero muito isso...)

Ah, e Paris no fim ficará. Claro. Sempre.





p. S.: Ontem vi-a como nunca se viu tão bela. Estava no banco de psiquiatria e não tinha a Nikon. Subi ao 15ème para ver um doente e lá estava o perfil todo, talvez perfeitamente enquadrável com os seus 70mm, em perfeito contraste negro contra o extremo laranja de um céu poente, sem sol que queimasse a exposição - logo acima erguia-se a jeito um muro de nuvens a esfiaparem-se em azul. A sempre ténue Tour Eiffel, a um polegar da Tour de Montparnasse, os prédios da Chinatown e as chaminés, o fumo a despregar do horizonte. O Dr. Yon falava e eu pouco ouvia. Não a levei, não posso partilhar, desculpem (a mim dói-me bastante).

Só comigo.

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