dezembro 13, 2006

A Morte Saiu À Rua

A morte saiu à rua num dia assim
Naquele lugar sem nome para qualquer fim
Uma gota rubra sobre a calçada cai
E um rio de sangue de um peito aberto sai

O vento que dá nas canas do canavial
E a foice de uma ceifeira de Portugal
E o som da bigorna como um clarim do céu
Vão dizendo em toda a parte o Pintor morreu

Teu sangue, Pintor, reclama outra morte igual
Só olho por olho e dente por dente vale
À lei assassina, à morte que te matou
Teu corpo pertence à terra que te abraçou

Aqui te afirmamos dente por dente assim
Que um dia rirá melhor quem rirá por fim
Na curva da estrada há covas feitas no chao
E em todas florirão rosas de uma nação.

Zeca Afonso

dezembro 12, 2006

Encontro de Um Picasso com Uma Mulher

(rascunho)


Nas águas paradas do silêncio. Esse fim de tarde filtrado pelas portadas. E tu fumavas. E o fumo do teu cigarro bailava por detrás dos meus olhos. Como ele resumia, em todo um bailado, aquele momento tão elementar. E tu, tão nua. Tanto que é impossível agarrar em imagem toda essa tua nudez. Ilusão de artista. Tocavas ao acaso em cordas da guitarra. Como duas mulheres, irmãs, amantes. Abraçavam-se ao acaso. Como se depois de um orgasmo se deixassem esquecer. Na infinita lentidão de uma fotografia. E o cigarro fumava. Derretia-se em suicídio durante o tempo que aquele momento demorasse a cristalizar. Na cor escura (quarta dimensão – esquecendo o tempo) daquele quarto decadente, fim de tarde impossível, que só eu e as cerdas do pincel viam, o fumo bailava. Em cada pirueta descambava na cor escuras das paredes. De ti. Da tua pele contra a guitarra. Dos lençóis que se enrolavam nas tuas pernas. Ao acaso. Nos nós e enrolos do fumo do tabaco. Entre tu e eu, separados pela tela, pela tua indiferença e pela minha necessidade de partir. Assim que o fumo acabasse. E eu te cristalizasse. Não, não era uma fotografia. Eras tu e o cigarro, que tentava perramente bailar nas pinceladas. E a guitarra que te amava loucamente. Porque tu não amas ninguém. Nem a ti. E porque eu amo o teu eu que pinto. Que domino e levo comigo. Quando me for embora. Quando o cigarro acabar. Hei-de voltar várias vezes ao teu cheiro e vou voltar a partir. Sempre. E tu não amas ninguém e torturas assim o mundo. E o mundo amar-te-á um dia por isso. O cigarro dá voltas e voltas, eco tardio dos lençóis. Que se enrolaram em ti e em mim enquanto fingíamos estar em conformidade com o mundo. Tudo isto se pinta no cavalete por detrás dos meus olhos. As tuas pernas estendidas (ao acaso) na borda da cama (como devem cheirar!), o lençol, a guitarra contra o peito – nudez incomparável –os cabelos na sombra da cor impossível, a boca, olhos que me fixam, provocadoramente (é óbvio que nunca amaste ninguém), que me vão fazer voltar aos lençóis. Quando te agarrar os braços e te arrancar a guitarra. Quando queimar as ondas dos lençóis com o calor das ondas do cigarro. Quando te abrir as pernas até adormeceres. Quando me for embora. Amar outras mulheres, a minha mulher, tanto quanto te amei. E pintar-me a mim com a imagem delas. Mas a ti pintei-te mesmo. No momento parado do bailado do fumo. Infinito instável no fim de tarde. De manhã fecho a porta com cuidado para não te acordar. Muito depois do cigarro acabar.










No fim do mundo eu olho-te e puxo-te. Na essência de mim própria que ignoro, por não tolerar e, ao mesmo tempo, fazer absoluta questão em amar-te. Não faria nada do que me pudesses pedir e sou eu que te obrigo a deitar nos meus lençóis. Puxo-te com força e sinto suor, prazer, saudade, alma e cansaço. Nunca poderias resistir, aos meus olhos, ao meu cigarro, porque em ti isso não cabe e é por isso que te amo. Como poderias ousar negar uma obra tua? O apelo dos teus miseráveis esguichos de tinta? Do teu génio? Não cabe em ti sequer a possibilidade de tal blasfémia. Hás de te ir embora quando achares que estou a dormir e hás-de voltar quando o meu cheiro a tabaco te der saudades. É por isso que te amo. Virás com o cheiro de outras mulheres. E eu vou delirar em ciúmes mas vou amar-te por isso. Não poderia ser de outra forma. Nunca poderia não te amar, a tua arte, a cor que tu vês nas paredes, as tuas mãos que me pintam o corpo enquanto me beijam, os teus olhos ingénuos de homem que pensa que me conhece (que pensa!), que me pinta como ninguém alguma vez me viu, mas que acha que me pode pintar toda num quadro. Que julga que eu não amo ninguém, que julga que eu me compreendo a mim própria e ao mundo. E eu vou deixar que tu voltes e vou absolutamente deixar que tu partas, todas as vezes, até me dar a vontade de abalar a tua credulidade e sair antes mesmo de acordares, para desaparecer no mapa do mundo. Não hei-de amar mais ninguém que se atravesse nos meus lençóis, além de nós os dois enquanto nos olhamos, parados, enquanto tudo o resto rodopia, as paredes, o fumo do cigarro em dança sobre-humana e apoteótica, ao som das cordas da minha guitarra, confidente vingativa dos fins de tarde em que tu não estás. Vou foder os que me apetecer e não vou pensar em ti e tu nunca vais saber que te amei, por me jogar propositadamente ao acaso naqueles lençóis de pensão, pelos meus gestos calculadamente indiferentes, desafiadores, e por me reclamar inteiramente como propriedade da minha tortura ao mundo. Compenso jogando a minha vida à desventura. Porque não queria que fosse diferente. Ou não te amava. Ou a tortura ao mundo não faria sentido. Porque quero que partas sempre. Morria por ti, para que pudesses continuar a pintar outras mulheres. Não te esqueças de fechar a porta com cuidado para não achares que me acordaste. Até um dia destes, até voltares a partir. Sempre.

novembro 09, 2006

Urbanização

s. f., alguém desconhecido abordar-te num espaço público (p. ex. no metro ou num hospital) e declamar-te um poema seu; adeus, até à próxima - os afastares de guitarras e bengalas

Alguém me disse que as formigas se espreguiçavam quando acordavam. Mas quem é que te mandou descobrir o segredo da minha vida inteira? Agora vou ter de as ensinar a sacudir a pilinha depois de mijar...

Gaudì.







Dali.







Picasso?

novembro 04, 2006

Num vão esforço de silenciar
a existência louca que tenho em mim
A sede solta que me invade
A vontade dura de voar...
- o meu corpo perde-se.

No diálogo das minhas vidas,
Nas ruelas, nas avenidas
do meu tortuoso ser e viver,
Da minha presença imposta,
Do meu suspiro instalado,
Do meu rodopiar imaginado

Sou a presa que persigo
que mordo, agarro, esfolo, desfaço,
para não existir nunca mais
Na existência que não me tolero.
Mas depois da tortura do existir
Para não ser quem me vi
Descobri enfim na paz do mundo
que no fundo de ninguém nunca existi.

novembro 03, 2006

O [meu] melhor filme de sempre. Para ser amado e odiado como nenhum outro.

outubro 31, 2006

Sabiam que as aves, além do azul, verde e vermelho, também vêem ultravioleta? Como serão as cores que nunca veremos?

Será como atingirem uma 4ª dimensão? Ou será simplesmente impossível na natureza por não termos nós inteligência disso? Como podemos ter consciência da existência de coisas que nunca poderemos percepcionar por nós próprios? Em que sítio do nosso mundo isso se arruma?


"Como é que o senhor descreve o vermelho a um cego de nascença?" in A Droga Alucinante - História do LSD", S. Cohen