abril 23, 2007

Gula

Copyright © M.H.

Medley

Adoro as tuas desculpas para o beijo,
o teu roçagar cauteloso,
o teu abraçar medroso,
de quem me quer conhecer e não pode.

De quem me abre a boca espantada
De quem não me desvenda a alma fechada,
de quem me quer beijar e não deve.

De quem eu quero amar e não posso.

Adoro o teu pescoço,
que eu afasto e repuxo
na noite interminável do nosso beijo.
Na noite incomensurável do nosso erro.
Entre a areia ou entre a pedra,
a calçada ou entre a relva,
no meio do nada ou meio selva.
Entre os lençóis alheios, possuídos,
virgens ou vendidos,
tu me arrastas.
Becos escuros, cantos duros.

Eu te convenço com o cheiro,
tu concretizas sem entremeio
Sem saber que eu te mando
e tu vens, reclamando
Toda eu em teu poder.

Que ilusão!
Que desilusão a tua quando eu fujo!
Que pudor o teu de me tapar
Que tristeza o teu mau beijar
A saia preta ajeitada,
a bocejar ensonada,
calça desapertada,
adormeço e insisto em ressonar-te.

Insisto em analisar-te,
em parodiar, em menosprezar-te,
em reclamar
da falta que não me fazes ao acordar.

Adoro a nossa fuga
em debandada pela rua,
o nosso disfarçar, o nosso esconder,
o nosso inventar, o nosso fingir
sobre tudo o que se passou
e no nada que adiantou.

Adoro o que deixo abandonado
onde me abandonei,
a varanda, o perigo,

O arrependido.

o silêncio, o esquecido.
O lenço, o colar, os ganchos,
o não voltar.

O ciúme que tenho, o que tu tens,
o que deixamos alguém ter,
o que deixamos de querer.

O parar, o não acabar
Adoro querer continuar.

Adoro amanhecer sem saber como me beijaste
Adoro o vestido que me despiste,
o pijama que me viste,
as torradas que não comeste.
O que me roubaste e guardaste,
como me puxaste para os teus braços.
As coisas que levaste e que ainda não trouxeste.

O amigo do lado, o amigo de há bocado.
O que me partiste, o que me estragaste.
O que me escreveste, o que não me disseste.

Adoro não termos como voltar.
Os sapatos que me doem de tanto andar.
O choro inventado para a ocasião,
o ficar estacado sem reacção.

Adoro os teus beijos
(quando não os odeio)

Adoro que me toques
(quando não quero que afastes)

Vão do nada ao tudo
entre a guitarra que tocas,
a mão que me roças,
o quanto me embebedas,
o tanto que me enebrias.

Os acordes, as cordas,
o paleio
As estrelas, o mar,
o receio
de que me leves sem retorno
de que não passe de morno,
de que não voltes, de que regresses.
De que nunca venhas.
De que me mintas.
De que me sintas.
De que tardes em demasia
de que me afogues em agonia.

Adoro que me leves a dançar,
adoro que fiques parado a olhar.

A música, o furacão,
o exagero, a alucinação.
Os cigarros. Os tambores.
A exaltação, os calores.

Por tudo te adoro,
em tudo te desprezo.

És igual, és oposto,
és racional, és imposto
por mim adentro ao de leve.

Não te abro as pernas,
não te ofereço nada,
não te quero aqui
e morro sem ti.

Só me dou em catadupa
quando me quiseres de certezinha absoluta.

E mesmo assim,
pode ser que, enfim,
(é provável)
me farte de te querer
e te jogue à outra margem.

E lá te vou adorando,
por seres muitos, por seres todos,
por nos irmos desencontrando.
Por se afogarem uns aos outros,
por me deixarem entretida,
por me cozinharem derretida
Por seres todos, seres ninguém
por seres eu e seres alguém.

(a todos eles lol)

abril 22, 2007

A Noite Passada

A noite passada acordei com o teu beijo
descias o Douro e eu fui esperar-te ao Tejo
vinhas numa barca que não vi passar
corri pela margem até à beira do mar
até que te vi num castelo de areia
cantavas "sou gaivota e fui sereia"
Ri-me de ti - "Então porque não voas?"
E então tu olhaste
depois sorriste
...abri a janela e voei

A noite passada fui passear no mar
a viola irmã cuidou de me arrastar
chegado ao mar alto abriu-se em dois o mundo
olhei para baixo dormias lá no fundo
faltou-me o pé senti que me afundava
por entre as algas teu cabelo boiava
a lua cheia escureceu nas águas
E então falámos
e então dissemos
...aqui vivemos muitos anos

A noite passada um paredão ruiu
pela fresta aberta o meu peito fugiu
estavas do outro lado a tricotar janelas
vias-me em segredo ao debruçar-te nelas
cheguei-me a ti disse baixinho "olá"
toquei-te no ombro e a marca ficou lá
o sol inteiro caiu entre os montes
E então tu olhaste
depois sorriste
...disseste "ainda bem que não voltei"

Sérgio Godinho

abril 21, 2007

Pré-Lançamento (Des1biga 13) - Catatonia

Tu existes,
sentado na poltrona.
As mãos ao acaso
sobre o teu corpo prostrado.

Os olhos cheios e esvaziados,
perdidos no vazio do teu pensamento
sem que nada te faça em movimento,
jogam-se em delírio inanimado
e enchem-se do mundo,
em impressão escondida
na inexpressão do teu rosto.

Tu existes há muito tempo.
Existes desde o dia em que nasceste
e do dia em que morreste,
para nascer de novo
no dia em que será suposto.

Respiras em compassos decadentes,
em mecanismos independentes
do ar que o mundo te sopra ao ouvido.
E mal te mexes.
Só existes
Não esperas, anseias, não desistes.

As tuas almas contorcem-se
sem precisares de torcer as mãos.
As tuas entranhas volvem-se
e desenvolvem-se
sem que a cabeça se te volte,
sem que o teu corpo se levante,
em erguer desperdiçado,
enquanto te vês desesperado
nessa revolução assente,
do alto do teu assento de poltrona morta.

Só existes,
não te mexendo.
Inventando o dia em que levantes
essas almas tuas da cadeira.

Inebriam-te em comprimidos
num ritual coordenado
num acto inconsciente, condenado
tremendo pelo dia em que te acordes.

A mão caída,
os teus pés mortos,
a boca descaída
o rabo inerte,
nesse teu trono conquistado.

Não és morto,
és paciente,
enquanto não te surge o que te movimente.

O dia em que acordes,
o silêncio que quebres
as entranhas a fumegar exaltação.
O acabar do mundo,
o espanto dos homens
a questão
a resposta de tudo
no teu andar.
A arte final no teu caminhar.
A justificação da continência
pelo amor ao movimento,
a inegável existência
a revolução.
O triunfo do corpo
e a imparável enxurrada
de todas as almas que te habitam
e que gritam a morte do génio
para que viva.
E mais nada.

Para que dances.
E te faças humanidade.
Para que chores
e te negues a eternidade.

10 - 11 - 12 de Janeiro de 2007(!)

(e o des1biga tarda em conseguir sair da editorial...)

abril 02, 2007

"Não me ria tanto desde aquela vez em que Salazar ganhou o prémio de melhor português de sempre."
Zélder