maio 20, 2007

Crónica I

Dali viu ali qualquer coisa. No meio de elefantes e girafas, ovos e medos sexuais, cadillacs, nus e no meio de Gala, Dali apaixonou-se por Cadaqués, terra de origens. Cadaqués só se vê à última curva de es[ca/tra]da que serpenteia desde a planície catalã e que sobe para dentro dos montes quase pirinóicos. O carro toca Rolling Stones pela enésima vez (das poucas cassetes que reuniu consenso geral – só um de nós se lembrou o quão torturante consegue ser a rádio espanhola) enquanto aquece e desespera, com o peso, a longa viagem e a subida. Se morresse ali, ficaríamos presos em Cadaqués, ainda sem saber que é essa mesma a vontade que Cadaqués impõe. Aquela que já só se vê na última curva, num buraco dos montes que se abre ao mar.

Cadaqués tem ruelas. Cadaqués sobe e desce. Cadaqués é branca. Branca e azul e amarela nas portadas das janelas. Cadaqués tem toda a gente. O mundo inteiro.

O mundo inteiro numa terriola mediterrânica à beira-mar, feita de calçada e de cal, com os seus minúsculos areais de pedregulhos, a água de banheira, tão tépida, tão parada no sol da tarde, transparente de azul de céu. Descemos à praça central para comprar fruta e damos um mergulho. Em segredo, que os outros dormem. Sem toalha, de saias ensopadas, juramos nunca ir embora. Juramos voltar, juramos morrer ali. Juramos cristalizar naquele microecossistema, que retém naquele momento um ideal de humanidade. Escolho uma casa de portadas azuis em estilo de prenúncio (“Um dia…”).

Lá em cima, no parque de campismo, depois de casas e ruas labirínticas, descansam caravanas velhas e velhos hippies, ingleses com miúdos ruivos, garrafas de vermute, gatos, italianos errantes de tenda em tenda que nos servem de guias nocturnos, franceses de guitarras que não resistem em cá voltar todos os anos, índios mal disfarçados, camping gaz e o paraíso (pedaço de terra de ventos – “Have you got haxixe?”). Vista para Port Lligat (quase se vêem os ovos dos telhados de Dali) e a montanha a tapar-nos do mundo. A visita nocturna ao átrio da igreja e a invasão da chuva. O abrigo junto ao mar, nos toldos dos cafés e a visão dos relâmpagos – apoteose da descoberta e iluminação da verdade absoluta de Cadaqués: o derradeiro sítio para se morrer feliz. Mas como o tempo do mundo afinal não pára, metemos tudo no carro outra vez, para ir de uma assentada até Barcelona (a viagem ainda não acabou). Depois de Cap Creus, de descer e mergulhar nas enseadas, voltamos à estrada (escada?) da montanha e, sem parar uma última vez em Cadaqués, vê-mo-la desaparecer, depois do vendedor (comidíssimo!) de pequenas transacções locais cruzar a berma da estrada aos ziguezagues (prenúncio de coisa má), cambaleante, periclitante, como se o mundo inteiro fosse cair com ele, enquanto a planície, a ameaçar-nos com a realidade, se abre à nossa frente. Satisfaction no rádio perro e o carro volta a ameaçar os 100º. Não nos esquecemos da guitarra e das panelas e adormecemos.




Sem comentários: